maio 27, 2016

Da Fuzeta à serra com volta a Alfandangas Breve passeio pela rua principal


Vindo de Alfandangas, ao entrar na Fuzeta pela rua principal, encontramos, à esquerda, um cinema com o nome, em grandes letras, pintado na parede: Cinema Topázio.

Passos andados, a rua alarga um pouco, formando um rectângulo, estreito, arborizado e com bancos de jardim: é a Praça da República. Num dos bancos, um velho de pele amarelada, seco e curvado, de mão nodosa apoiada a um bordão, cabeça tombada, ausente e de olhos parados como de cego, fita o chão. Perto, e tão distantes, debaixo de uma palmeira, dois rapazinhos jogam ao berlinde.

No outro lado há um café. Está aberto e vazio. Sobre o passeio, sentados em cadeiras com os espaldares, onde apoiam os braços, voltados para a frente, dois homens, de chapéu levantado na nuca e caído nos olhos, falam com outros dois homens, os quais, também de chapéus levantados na nuca e caídos nos olhos, estão de pé, pernas cruzadas, corpo inclinado para a banda, e encostam os cotovelos à capota de um automóvel.

Quando passo, calam-se. E todos os quatro, sem se moverem, vão virando furtivamente os olhos, a tentar descobrir quem sou, de onde venho, que faço. Sigo em frente como se nada tivesse notado. Ao passar, noto aborrecido que, à esquina da Praça da República, o Bar da Tia Anica ainda não abriu.

E lá continuo no jogo do cego que vê tudo. A tarefa obriga. Ver, ouvir e saber eis a base do repórter. Assim, indo a meio caminho, avisto, pela porta de uma casa térrea, quatro ciganos vestidos de preto, caras duras e de chapéu negro, sentados em volta de uma mesa. Atrás deles, de pé, quatro ciganas delgadas e altas, também vestidas de preto, aquietavam-se, de braços cruzados sobre os seios. No silêncio da casa, a mais jovem, de queixo atirado para a frente, chora.

Foi somente o que vi. Nada mais do que isso. Um quadro para ilustrar uma crónica de repórter. Bem diferente, no entanto, da fotografia dos três ingleses de Monte Gordo.

In: Manuel da Fonseca, Crónicas Algarvias

maio 20, 2016

O marítimo de Olhão

"O marítimo de Olhão tem, como nenhum outro, um grande sentimento de igualdade: estende a mão a toda a gente. É que no mar os homens correm os mesmos perigos. São também profundamente religiosos, porque estão a toda a hora na presença de Deus. Duas tábuas, a fragilidade e a incerteza forçam-nos a contar consigo e com a companha. Arriscam a vida para salvar a dos outros: hoje por ti, amanhã por mim. Homens simples porque a profissão é simples e o meio, grande e eterno, não os corrompe. E, como o mar abundante e pródigo não tem cancelas, são generosos, imprevidentes e comunistas. Detestam os tribunais, que não compreendem, e ignoram a vida da terra. Se a mulher lhes morre, não entram em licitações com os filhos: deixem-lhes a eles o barco e as redes e tomem conta do resto. Reparei que em todas as casas havia uma gaiola com um pintassilgo. Os homens do mar tiveram sempre uma grande ternura pelas aves."

in: Raul Brandão, Os Pescadores

maio 07, 2016

Olhão


"De manhã saio em Olhão deslumbrado. Céu azul-cobalto - por baixo, chapadas de cal. Reverberação de sol, e o azul mais azul, o branco mais branco. Cubos, linhas geométricas, luz animal que estremece e vibra como as asas de uma cigarra. Entre os terraços, um zimbório redondo e túmido como um seio aponta o bico para o ar. E ao cair da tarde, sobre este branco imaculado, o poente fixa-se como um grande resplendor. É uma terra levantina que descubro; só lhe faltam os esguios minaretes. Duas cores e cheiro : branco, branco, branco, branco doirado pelo sol, que atingiu a maturidade como um fruto, pinceladas de roxo uniformes para as sombras, e um cheirinho suspeito a cemitério. O fruto que chega a este estado está a dois dedos do apodrecimento, e é talvez por isso que a ideia do sepulcro me não larga nas noites brancas e pálidas em que me julgo perdido num vasto campo funerário..."

in: Raul Brandão, Os Pescadores