Percorremos enthusiasmados este
modelo de grande cidade moderna, com arruamentos amplíssimos, de trinta metros
alguns, alinhados pela fileira geométrica.
Não há monumentos da velha idade e
não há ociosos. A vida pesca é o pão-nosso da terra e nunca um povoado imitou
melhor o «cura de pobres» - porque fal-os e baptisa-os! Elles arpoam o atum e a
curvina, elles a conservam, elles a collocam em todos os mercados do mundo.
Raça privilegiada de trabalhadores. Nem parecem portuguezes, os malditos!
Cheios de fé na sua Virgem protectora, são pontuaes à missa domingueira na egreja
matriz – que o Marquez de Pombal lhes doou – e participam com enthusiasmo das
festas annuaes. Fôra disto, os seus templos são o Mar e a Fabrica, e quando
Deus quer, um bocadinho de candonga representada por alguns innocentes lenços
de seda que pela calada da noite, no silencioso deslisar dos barcos, em remadas
discretas, vêem apparecer na villa, trazidos de Hespanha sem a contrastaria do
posto fiscal que não cessa por isso de arregalar bem os seus olhos de Argus.
A permanência do forasteiro em Villa Real
obriga um assalto a Ayamonte, que fica vis-à-vis, a um tiro d’espingarda. Não
faltam para isso barcos de todos os formatos que teem o exclusivo d’estas
carreiras e uma tabella de preços … elástica. De resto, a travessia faz-se por
diminuta esportula. O viageiro percorre a avenida marginal do Guadiana, onde já
se altheiam casas de boa esthetica, a fazer negaças para Ayamonte, e tem logo a
certeza de que não necessita de deitar pregão para que os catraeiros, surgindo
de toda a parte, como diabos de magica, o atraquem, desbarretando-se n’um
servilismo de roça, perseguindo-o até ao cães, a encarecer a solidez e o
andamento do seu barco.
Não quizemos esquivar-nos à praxe de
ver a povoação castelhana, e depois de visitar, inda que fugidiamente, uma das
grandes fabricas de conserva de atum, tomâmos assento n’um dos cahiques que
coalham o rio – e vá de alliviar a escota, vela enfunada ao vento, cortando a
massa agitada das aguas como um arado em terras frescas.
“Nada nos obriga a addiar o jantar no
Hotel de las campanas, onde nos alojamos, o mais apparatoso da terra, com o seu
balcão architectonico de granito lavrado, o seu amplo comedor em tons de
carvalho e as suas servientas palradoras com medalhas de cravos no topete.
O repasto decorre em alegre
intimidade, esmaltado de ditos espirituosos sobre o menu, que contrasta pela
originalidade com a monótona cosinha portugueza. Ao «tost» bebe-se à Hespanha
cavalheiresca e… salerosa. Só depois d’isto nos decidimos a cruzar os
arruamentos pedregrosos, d’uma irregularidade de meandrica, por onde as
mulheres transitam descuidadamente, soberanamente – A que vás, Mercêdes? A casa
de mi padre! – dispensando-se de caudatarios para cohonestar os seus constantes
passeios.
Vamos também ao café, que nos hotéis
hespanhoes é fructo prohibido, e como se torna necessário entreter o tempo,
façamos um rodeio pelo bairro alto da cidade que se distende em fiadas de casas
uniformes, de regular aspecto, em cujas frontarias abrem nichos illuminados.
Ali vive a população industrial e piscatória."
in: João Arruda - Cartas d'um viajor, 1908
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