janeiro 15, 2012

Ainda sobre Vila Real

"Apeiem os andares nobres da baixa de Lisboa, desnudem as montras luxuosas, introduzam-lhes algumas fabricas de conserva e de lanifícios e terão a Villa Real de Santo António, com o carimbo pombalino de 1774, a substituir de Arenilha que o mar lambeu traiçoeiramente.

Percorremos enthusiasmados este modelo de grande cidade moderna, com arruamentos amplíssimos, de trinta metros alguns, alinhados pela fileira geométrica.

Não há monumentos da velha idade e não há ociosos. A vida pesca é o pão-nosso da terra e nunca um povoado imitou melhor o «cura de pobres» - porque fal-os e baptisa-os! Elles arpoam o atum e a curvina, elles a conservam, elles a collocam em todos os mercados do mundo. Raça privilegiada de trabalhadores. Nem parecem portuguezes, os malditos! Cheios de fé na sua Virgem protectora, são pontuaes à missa domingueira na egreja matriz – que o Marquez de Pombal lhes doou – e participam com enthusiasmo das festas annuaes. Fôra disto, os seus templos são o Mar e a Fabrica, e quando Deus quer, um bocadinho de candonga representada por alguns innocentes lenços de seda que pela calada da noite, no silencioso deslisar dos barcos, em remadas discretas, vêem apparecer na villa, trazidos de Hespanha sem a contrastaria do posto fiscal que não cessa por isso de arregalar bem os seus olhos de Argus.

A permanência do forasteiro em Villa Real obriga um assalto a Ayamonte, que fica vis-à-vis, a um tiro d’espingarda. Não faltam para isso barcos de todos os formatos que teem o exclusivo d’estas carreiras e uma tabella de preços … elástica. De resto, a travessia faz-se por diminuta esportula. O viageiro percorre a avenida marginal do Guadiana, onde já se altheiam casas de boa esthetica, a fazer negaças para Ayamonte, e tem logo a certeza de que não necessita de deitar pregão para que os catraeiros, surgindo de toda a parte, como diabos de magica, o atraquem, desbarretando-se n’um servilismo de roça, perseguindo-o até ao cães, a encarecer a solidez e o andamento do seu barco.

Não quizemos esquivar-nos à praxe de ver a povoação castelhana, e depois de visitar, inda que fugidiamente, uma das grandes fabricas de conserva de atum, tomâmos assento n’um dos cahiques que coalham o rio – e vá de alliviar a escota, vela enfunada ao vento, cortando a massa agitada das aguas como um arado em terras frescas.

“Nada nos obriga a addiar o jantar no Hotel de las campanas, onde nos alojamos, o mais apparatoso da terra, com o seu balcão architectonico de granito lavrado, o seu amplo comedor em tons de carvalho e as suas servientas palradoras com medalhas de cravos no topete.

O repasto decorre em alegre intimidade, esmaltado de ditos espirituosos sobre o menu, que contrasta pela originalidade com a monótona cosinha portugueza. Ao «tost» bebe-se à Hespanha cavalheiresca e… salerosa. Só depois d’isto nos decidimos a cruzar os arruamentos pedregrosos, d’uma irregularidade de meandrica, por onde as mulheres transitam descuidadamente, soberanamente – A que vás, Mercêdes? A casa de mi padre! – dispensando-se de caudatarios para cohonestar os seus constantes passeios.

Vamos também ao café, que nos hotéis hespanhoes é fructo prohibido, e como se torna necessário entreter o tempo, façamos um rodeio pelo bairro alto da cidade que se distende em fiadas de casas uniformes, de regular aspecto, em cujas frontarias abrem nichos illuminados. Ali vive a população industrial e piscatória."
in: João Arruda - Cartas d'um viajor, 1908

Sem comentários:

Enviar um comentário